quinta-feira, 5 de julho de 2007

Escravatura Global - Manuel Giraldes

Além-Mar
Abril, 2003


Há 145 anos, uma lei anunciava a abolição da escravatura em todo o Império português. Em 1948, a Carta Internacional dos Direitos do Homem consagrava a escravidão como um atentado à dignidade da pessoa humana. Em 2003, calcula-se que, um pouco por todo o mundo, 27 milhões de escravos contribuem com a sua desgraça para a opulência da economia global. Infelizmente, às vezes parece que o tempo anda para trás.
É comum pensar-se, com um arrepio de indignação e alívio, que a escravatura é um bárbaro crime contra a humanidade arrumado algures nos poeirentos arquivos do passado. Navios cheios de negros acorrentados? Ah, até vi num filme histórico do Spielberg. Homens, mulheres e crianças a trabalharem nos campos, de sol a sol, sob a mira das armas? Ufa! É certamente coisa de romance antigo, tipo “A Cabana do Pai Tomás”. Infelizmente, não é assim. Mudaram os transportes, as grilhetas, os tipos de coacção, mas a escravatura é um fenómeno dos nossos dias. Que não só tende a aumentar como a adquirir formas – se é possível cometer o anacronismo de comparar épocas e estilos de vida tão díspares – cada vez mais graves.
Calcula-se que, neste preciso momento, um pouco por todo o mundo, 27 milhões de pessoas se encontrem acorrentadas a tão desumana sorte. As correntes que as prendem não são de ferro, mas podem ser até mais fortes e mais penosas. Porque, dantes, o escravo era um «bem» caro e raro, e por isso mesmo merecedor de certos cuidados. Mas, nos tempos que correm, a própria lei da oferta e da procura se encarregou de embaratecer e de desvalorizar o “produto”: com a explosão demográfica, o aumento da pobreza e da exclusão social geradas pelo sempre crescente alargamento do fosso que separa ricos e pobres, o torrencial fluxo de imigrantes que se sujeitam a tudo para tentarem encontrar na metade abastada do mundo um modo qualquer de subsistência, “matéria-prima” não falta. E se o escravo moderno enfraquece ou adoece, deita-se fora e arranja-se outro. Que as prateleiras dos armazéns globais estão cheias de gente desesperada.
Nos escaparates, como sempre, pode escolher-se entre homens, mulheres e crianças. Estas são particularmente apreciadas, porque são mais dóceis, comem e protestam menos, dormem em qualquer canto e, como é necessário menos força para obrigá-las a trabalhar, dão menos dores de cabeça a capatazes e vigilantes. Meninos escravos propriamente ditos haverá no mundo cerca de 8 milhões. Não muito longe desta condição, encontram-se os 111 milhões de menores de 15 anos que executam tarefas impróprias, perigosas ou demasiado árduas para a idade.

A moral do lucro

Mas não. Não se confunda. Quando se diz: “O miúdo trabalha que nem um escravo”, não quer dizer que o seja. Para sê-lo, realmente, é preciso que exista – na definição do especialista Kevin Bales – “o controlo total de uma pessoa sobre outra, com fins de exploração económica”. Dantes, tal controlo passava pela compra ou pela posse. Hoje, não só não é preciso, como até é “anti-económico”.
Explica Bales, um professor da Universidade inglesa do Surrey, que correu o mundo a estudar a escravatura moderna: “Hoje, quando as pessoas compram escravos, não pedem um recibo nem títulos de propriedade, mas adquirem o controlo – e usam a violência para manter esse controlo. Os escravocratas têm todos os benefícios da propriedade sem as responsabilidades legais. Na verdade, para os escravocratas, não ter a posse legal é uma melhoria, porque obtêm o controlo total sem qualquer responsabilidade por aquilo que possuem (...). A escravidão é uma obscenidade. Não se trata apenas de roubar o trabalho de alguém; trata-se do roubo de toda uma vida. Está mais estreitamente relacionada com o campo de concentração do que com questões de más condições de trabalho.”
Em Gente Descartável. A Nova Escravatura na Economia Mundial (de Kevin Bales – Editorial Caminho, Nosso Mundo, Lisboa, 2001), o especialista estabelece bem a diferença entre as trágicas imagens que nos foram legadas pelo passado e a talvez ainda mais trágica realidade actual: “Na nova escravidão, a raça tem pouco significado. No passado, as diferenças étnicas e raciais eram usadas para explicar e desculpar a escravatura. Essas diferenças permitiam aos escravocratas inventar razões que tornavam a escravatura aceitável, ou até uma boa coisa para os escravos. A diferença dos escravos tornava mais fácil usar a violência e a crueldade necessárias para o controlo total. Essa diferença podia ser definida quase de um modo qualquer – diferente religião, tribo, cor de pele, língua, costumes ou classe económica (...). Hoje, a moralidade do dinheiro supera todas as outras considerações. A maioria dos escravocratas não sente a necessidade de explicar ou defender o método de recrutamento ou de gestão do trabalho que escolheram. A escravatura é um negócio muito lucrativo, e um bom lucro é justificação bastante.”

Gente barata

Os cálculos da Anti-Slavery International falam por si: por volta de 1850, nas plantações do Sul dos actuais EUA, um escravo custava em média o equivalente a 40 mil euros; hoje, em contrapartida, a sua cotação no mercado mundial ronda os 90 euros. O embaratecimento tem um efeito perverso: «Os escravos já não são um grande investimento, que valha a pena cuidar e manter. Se adoecem, deixam de ser úteis, ficam estropiados ou dão demasiado trabalho ao escravocrata, este limita-se a descartar-se deles ou a matá-los.»
Explica esta organização de defesa de direitos humanos (a mais antiga do mundo, precisamente porque foi criada para pugnar pela abolição da antiga escravatura): “Em 1850, os escravos do Alabama rendiam aos seus senhores cerca de 5 por cento ao ano, en¬quanto nos dias de hoje as margens de lucro do trabalho escravo chegam a atingir os 800 por cento (...). Quando a menina tailandesa forçada a prostituir-se contrai HIV, é abandonada à sua sorte; o brasileiro acorrentado à produção de carvão em fornos gigantescos e em condições desumanas é recambiado, mal a floresta que os alimenta é arrasada; o menino indiano que passa os seus dias a enrolar cigarros é devolvido à família se deixa de poder cumprir a sua “missão”, e depressa outro vem ocupar o seu lugar; em Londres, um trabalhador doméstico escravizado foi abandonado na rua porque a família para quem trabalhava se mudou para outro país (...). Os escravos modernos são descartáveis como canetas ou copos de plástico: usa-se e deita-se fora.”
Segundo a organização, o tráfico de pessoas não conhece fronteiras e ultrapassa a barreira dos continentes, de tal modo que se tornou uma das actividades preferidas dos cartéis internacionais do crime organizado: “O lucro do comércio da desgraça humana só é ultrapassado pelo do tráfico de drogas e de armas. Segundo a Administração norte-americana, todos os anos são “contrabandeadas” para os EUA 50 mil pessoas. O seu destino: prostituição não remunerada, serviço doméstico ou actividades que exploram o estatuto precário dos imigrantes clandestinos.”
Portugal não escapa ao fenómeno. Ainda há dias, um especialista da Polícia Judiciária considerava o tráfico de pessoas o crime da década em que vivemos. Também entre nós há os imigrantes que caem nas malhas das máfias, e sobretudo mulheres, africanas, brasileiras, macaenses ou dos países de Leste, forçadas a prostituírem-se. Segundo Inês Fontinha, directora de O Ninho – a associação católica que há anos luta por restituir a dignidade às prostitutas – só por Lisboa passarão milhares de potenciais “escravas sexuais”. São tantas, que o “preço de compra” pode descer até aos 50 contos.
Os lucros dos “donos” e dos “comerciantes” são incalculáveis. De acordo com a Interpol, uma destas mulheres forçadas a prostituir-se tem entre 15 a 30 clientes por dia e, da receita diária, deverá entregar ao proxeneta entre 457 e 914 euros, isto se não quiser ser maltratada. O “mercado” português não é o único alvo: o País tor¬nou-se uma plataforma no acesso ao “mercado comunitário”.

Um bom investimento

Há escravos em Lisboa, Londres, Paris ou Nova Iorque. Ou seja, um pouco por todo o mundo. Mas esta forma extrema de exploração é particularmente aguda, generalizada e gritante no Sueste da Ásia, no subcontinente indiano, em África e nos países árabes. As razões são mais ou menos evidentes: para além da explosão demográfica e da persistência de formas tradicionais de escravatura, a rápida mudança social e económica registada nos países em desenvolvimento.
Argumenta Kevin Bales: “As sociedades tradicionais, embora sendo por vezes opressivas, assentavam geralmente em laços de responsabilidade e de afinidade que podiam ajudar as pessoas a enfrentar uma crise, como a morte do ganha-pão, uma doença grave ou uma má colheita. A modernização e a globalização da economia mundial quebrou essas famílias tradicionais e a pequena agricultura de subsistência que as mantinha. A mudança forçada da agricultura de subsistência para a agricultura comercial, a perda das terras comunitárias e as políticas governamentais que suprimem as receitas agrícolas a favor da comida barata para as cidades, tudo ajudou a arruinar milhões de camponeses e a expulsá-los das suas terras - por vezes para a escravidão.”
Por obra e graça da globalização, mesmo os que pensam que não têm nada a ver com este comércio abjecto acabam por, indirectamente, colher-lhe os frutos. E não só através dos preços baixíssimos dos produtos que nos chegam das regiões em que se recorre à mão-de-obra escrava.

Uma nova epidemia

A escravatura é uma realidade difusa, escondida, difícil de captar. Mas, mesmo assim, Kevin Bales consegue estimar o lucro total anual gerado pelos 27 milhões de escravos – um número que o próprio considera ser uma aproximação, mas «modesta» – existentes à escala mundial: cerca de 13 mil milhões de euros, a verba que a Holanda gasta em turismo ou “substancialmente menos que a fortuna pessoal do fundador da Microsoft, Bill Gates.”
Parece uma verba pequena, mas trata-se apenas do valor directo, porque o valor indirecto do trabalho escravo na economia mundial é muito maior: “Por exemplo, o carvão produzido pelo trabalho escravo é fundamental para produzir aço no Brasil. Muito desse aço é depois transformado em automóveis, peças de automóveis, e outros artigos de metal que constituem um quarto das exportações do Brasil. Só a Grã-Bretanha importa anualmente 1,6 mil milhões de dólares em artigos do Brasil; os Estados Unidos significativamente mais. A escravidão faz baixar os custos de produção da fábrica; essas poupanças podem ser transmitidas em sentido ascendente na corrente económica, atingindo finalmente as lojas da Europa e da América do Norte como preços mais baixos ou lucros mais altos para os retalhistas (...). Temos de encarar os factos: ao procurar sempre o melhor negócio, podemos estar a escolher bens produzidos por escravos sem saber o que estamos a comprar. Os trabalhadores que produzem peças de computadores ou de televisores na Índia podem ser pagos com salários baixos, em parte porque os alimentos produzidos por trabalho escravo são tão baratos. Isto faz baixar o custo dos artigos que eles produzem, e as fábricas que não conseguem competir com os seus preços encerram as portas na América do Norte e na Europa. O trabalho escravo em qualquer parte ameaça o emprego real em toda a parte.”
À laia de conclusão, o especialista alerta: “A nova escravatura é como uma nova doença para a qual não existe vacina. E esta doença está a espalhar-se.”

Sem comentários: