quarta-feira, 27 de junho de 2007

A nova escravatura I - Kevin Bales

Kevin Bales
Gente descartável
Lisboa, Editorial Caminho, 2001
(excertos adaptados)



A nova escravatura

No Verão, os campos franceses vivem à altura da sua reputação. Se nos sentamos na rua de uma pequena aldeia a uma centena de quilómetros de Paris, a brisa traz-nos o aroma de maçãs do pomar ao lado. Vim aqui para conhecer Seba, (os foram mudados) uma escrava recentemente liberta. É uma jovem de vinte e dois anos, bonita e animada, mas enquanto me conta a sua história retrai-se em si mesma, fumando furiosamente, tremendo, e depois vêm as lágrimas.

Fui criada pela minha avó no Mali, e quando em ainda menina uma mulher que a minha família conhecia chegou e perguntou-lhe se podia levar-me para Paris para cuidar dos filhos dela. Ela disse à minha avó que me punha na escola e que eu aprenderia francês. Mas quando cheguei a Paris não fui mandada para a escola, tive que trabalhar todos os dias. Fazia todo o trabalho na casa deles; fazia as limpezas, cozinhava as refeições, cuidava das crianças, e lavava e alimentava o bebé. Todos os dias começava antes da 7 horas da manhã e acabava às 11 da noite; nunca tive um dia de folga. A minha patroa não fazia nada; dormia até tarde e depois via televisão ou saía.
Um dia eu disse-lhe que queria ir à escola. Respondeu que não me tinha trazido para França para ir à escola mas para cuidar dos filhos dela. Eu estava cansada e esgotada. Tinha problemas com os dentes; por vezes a cara inchava-me e a dor era horrível. Por vezes tinha dores de estômago, mas quando estava doente tinha que trabalhar na mesma. Às vezes, quando tinha dores, chorava, mas a minha patroa gritava comigo.
Eu dormia no chão num dos quartos das crianças; a minha comida eram os restos deles. Não podia tirar comida do frigorífico como as crianças. Se eu tirasse comida, ela batia-me. Balia-me muitas vezes. Estava sempre a dar-me bofetadas. Batia-me com a vassoura, com os instrumentos de cozinha, ou chicoteava-me com cabos eléctricos. Às vezes eu sangrava; ainda tenho marcas no corpo.
Uma vez, em 1992, atrasei-me a ir buscar as crianças à escola; a minha patroa e o marido ficaram furiosos comigo e bateram-me e depois empurraram-me para a rua. Eu não tinha para onde ir; não compreendia nada, e andei pelas ruas. Ao fim de algum tempo o marido encontrou-me e levou-me outra vez para casa deles. Ali despiram-me toda, ataram-me as mãos atrás das costas, e começaram a chicotear-me com um arame amarrado a um pau de vassoura. Batiam-me os dois ao mesmo tempo. Eu sangrava muito e gritava, mas eles continuavam a bater-me. Depois ela esfregou malaguetas nas minhas feridas e enfiou-mas na vagina. Perdi os sentidos.
Algum tempo depois, uma das crianças desatou-me. Fiquei deitada no chão, onde me deixaram vários dias. As dores eram horríveis mas ninguém tratou as minhas feridas. Quando me consegui levantar tive que trabalhar outra vez, mas depois disso fiquei sempre fechada em casa. Eles continuaram a bater-me.

Seba foi finalmente libertada quando um vizinho, depois de ouvir os sons dos insultos e espancamentos, conseguiu falar com ela. Vendo-lhe as cicatrizes e as feridas, o vizinho chamou a polícia e o Comité Francês contra a Escravatura Moderna (CCEM), que abriram um processo e tomaram Seba a seu cuidado. Os exames médicos confirmaram que ela tinha sido torturada.
Hoje Seba está bem tratada, vive com uma família de acolhimento. Está a receber assistência e a aprender a ler e a escrever. A recuperação demorará anos, mas ela é uma jovem notavelmente forte. O que me impressionou foi a distância que Seba ainda tem que percorrer. Enquanto falávamos, compreendi que, embora ela tivesse vinte e dois anos e fosse inteligente, a sua compreensão do mundo era menos desenvolvida que a média das crianças de cinco anos. Por exemplo, até ser libertada tinha pouca noção do tempo — sem conhecimento das semanas, meses ou anos. Para Seba havia apenas a interminável roda do trabalho e do sono. Sabia que havia dias quentes e dias frios, mas nunca aprendeu que as estações seguem um padrão. Se alguma vez soube o dia do seu aniversário tinha-o esquecido, e não sabia a sua idade. Fica desorientada com a ideia de «escolha». A sua família de acolhimento tenta ajudá-la a fazer opções, mas ela ainda não consegue entender isso.
Se o caso de Seba fosse único, seria bastante chocante; mas Seba é uma de entre talvez 3000 escravos domésticos em Paris. Essa escravatura não existe também só em Paris. Em Londres, Nova Iorque, Zurique, Los Angeles, e pelo mundo fora, as crianças são brutalizadas como escravos domésticos. E são apenas um pequeno grupo dos escravos do mundo.
A escravatura não é um horror definitivamente arrumado no passado; ela continua a existir em todo o mundo, mesmo em países desenvolvidos como a França e os Estados Unidos. Por todo o mundo os escravos trabalham e suam e constroem e sofrem. Os escravos no Paquistão podem ter fabricado os sapatos que nós calçamos e o tapete que pisamos. Os escravos das Caraíbas podem ter posto o açúcar na nossa cozinha e os brinquedos nas mãos dos nossos filhos. Na Índia, eles podem ter cosido a camisa que vestimos e polido o anel do nosso dedo. E não lhes pagam nada.
Os escravos tocam também indirectamente as nossas vidas. Eles fizeram os tijolos para a fábrica que produziu o aparelho de TV que nós vemos. No Brasil, os escravos produziram o carvão que temperou o aço que fez as molas do nosso carro e a lâmina do cortador de relva. Os escravos cultivaram o arroz que alimentou as mulheres que teceram o belo pano que você usa nos cortinados. A sua carteira de investimentos e o seu fundo mútuo de pensões possuem títulos de empresas que utilizam trabalho escravo no mundo em vias de desenvolvimento. Os escravos mantêm baixos os seus custos e altos os lucros dos seus investimentos.
A escravatura é um negócio em ascensão e o número de escravos está a crescer. Há pessoas que enriquecem usando escravos. E quando já não precisam dos seus escravos, limitam-se a pôr essas pessoas de parte. Esta é a nova escravatura, que se centra nos grandes lucros e nas vidas baratas. Não se trata de possuir pessoas no sentido tradicional da antiga escravatura, mas de controlá-las completamente. As pessoas tornam-se instrumentos completamente descartáveis para fazer dinheiro.
Mais de dez vezes ao acordar de manhã cedo descobri o corpo de uma jovem flutuando na água ao pé da lancha. Ninguém se preocupava em enterrar as raparigas. Lançavam simplesmente os corpos ao rio para serem comidos pelos peixes.
Este era o destino das jovens escravizadas como prostitutas nas cidades mineiras da Amazónia, explicou Antónia Pinto, que ali trabalhou como cozinheira e alcoviteira. Ao mesmo tempo, o mundo desenvolvido deplora a destruição das florestas tropicais, poucas pessoas compreendem que o trabalho escravo é utilizado para as destruir. Os homens são atraídos para a região com promessas de riqueza em pó de ouro, e raparigas de apenas onze anos recebem ofertas de emprego nos escritórios e restaurantes que servem as minas. Quando chegam às longínquas regiões mineiras, os homens são aprisionados e forçados a trabalhar nas minas; as raparigas são espancadas, violadas, e postas a trabalhar como prostitutas. Os seus «agentes de recrutamento» recebem uma pequena soma por cada uma delas, talvez uns 150 dólares. As «recrutas» tornaram-se escravas — não através da posse legal, mas através da autoridade decisiva da violência. A polícia local actua como reforço para controlar os escravos. Como uma jovem explicava: «Aqui os donos de bordéis mandam a polícia bater-nos... se fugimos, eles perseguem-nos, se nos acham matam-nos, ou se não nos matam batem-nos todo o caminho de volta ao bordel.»
Os bordéis são incrivelmente lucrativos. A rapariga que «custa» 150 dólares pode ser vendida para sexo até dez vezes por noite e render 10 000 dólares por mês. As únicas despesas são os pagamentos à polícia e uma bagatela para comida. Se uma rapariga causa problemas, foge ou adoece, é fácil livrar-se dela e substituí-la. Antónia Pinto descreveu o que aconteceu a uma menina de onze anos que se recusou a fazer sexo com um mineiro: «Depois de decapitá-la com o machete, o mineiro circulou na sua lancha rápida, exibindo-a para os outros mineiros, que aplaudiam e gritavam aprovadoramente.»
Como a história destas raparigas mostra, a escravatura, ao contrário do que a maioria de nós foi levada a crer, não acabou. Certamente, a palavra escravatura continua a ser usada para significar toda a espécie de coisas, e demasiadas vezes tem sido aplicada como uma metáfora fácil. Ter dinheiro apenas para sobreviver, receber salários que mal dão para viver, pode chamar-se um salário de escravo, mas não é escravatura. Os meeiros têm uma vida difícil, mas não são escravos. O trabalho infantil é horrível, mas não é necessariamente escravatura.
Podíamos pensar que a escravatura é uma questão de posse, mas isso depende daquilo que entendemos por posse. No passado, a escravatura implicava que uma pessoa possuía legalmente outra pessoa, mas a escravatura moderna é diferente. Hoje, a escravatura é ilegal em toda a parte, e já não há posse legal de seres humanos. Quando as pessoas compram escravos hoje não pedem um recibo nem títulos de propriedade, mas adquirem o controlo — e usam a violência para manter esse controlo. Os escravocratas («Slaveholder» no original. (N. do E.) têm todos os benefícios da propriedade sem as responsabilidades legais. Na verdade, para os escravocratas, não ter a posse legal é uma melhoria, porque obtêm o controlo total sem qualquer responsabilidade por aquilo que possuem.
A despeito desta diferença entre a velha e a nova escravatura, penso que toda a gente concordaria em que aquilo de que falo é escravatura: o controlo total de uma pessoa por outra com fins de exploração económica. A escravatura moderna esconde-se por trás de diferentes máscaras, usando advogados espertos e cortinas de fumo legais, mas quando se arrancam as mentiras, descobrimos alguém controlado pela violência, e a quem é negada toda a liberdade pessoal, para fazer dinheiro para outra pessoa. Ao viajar pelo mundo para estudar a nova escravatura, olhei para lá das máscaras legais e vi pessoas acorrentadas. É claro, muitas pessoas pensam que já não existe uma coisa como a escravatura, e eu era uma dessas pessoas ainda há poucos anos.

1 comentário:

Andressa disse...

Olá, estou realizando um trabalho sobre a escravidão no Brasil do século XXI, e queria muito encontrar o livro de Kevin Bales, Gente descartável: A Nova Escravatura na Economia Mundial, mas não consigo. Você teria alguma ideia de onde posso comprar esse livro?